“O Estado ajuda zero”: a realidade do trabalho sexual em Portugal

Apesar de terem assistido à descriminalização da sua atividade em 1983, os trabalhadores do sexo continuam sem a ver reconhecida como uma profissão. O resultado é a impossibilidade de descontos para a reforma, de direito a subsídios, de opção de escolha de outras alternativas.

Forçada a ingressar na atividade para sustentar os filhos de doze, sete e menos de um ano, após a morte do marido, os quinze anos de prostituição de Rosário Costa foram marcados por discriminação e falta de direitos. O estigma agravou-se a partir do momento em que o consumo de drogas foi percetível. Perdi o direito de ter os meus filhos ao pé de mim, perdi o direito de cuidar de mim, perdi os meus direitos todos”. Quando tentava recorrer à polícia devido a problemas com clientes, era menosprezada. “Éramos parasitas, como eles diziam, parasitas da sociedade”. 

GAT In Mouraria, em Lisboa

Devido aos abusos físicos e psicológicos que sofria do seu companheiro, que foi seu “chulo” durante nove anos, Rosário decidiu refazer a sua vida. Pediu ajuda a Maria João, coordenadora do Projeto Red Light da Associação Positivo, Grupo de Apoio e Autoajuda, em Lisboa, onde são disponibilizados rastreios ao VIH, hepatite B, hepatite C, sífilis, entre outras doenças sexualmente transmissíveis. É a única associação do país que faz o exame de citologia, indispensável a trabalhadoras sexuais, população de foco do Projeto, iniciado em 2003. Financiado pela DGS – inicialmente a 80%, agora a 51% – acompanha atualmente 897 mulheres, das quais 263 começaram a seguidas em 2023.

Material preventivo disponibilizado pela Associação Positivo

Este número (897) é apenas referente a trabalhadoras sexuais mulheres, a que esta associação consegue chegar. Muitas e muitos mais são aqueles espalhados por todo o país sem qualquer acesso a apoios ou a proteção. “O problema do trabalho sexual ou da prostituição em geral é que, como não é regulamentado, se estas pessoas forem roubadas, ou se forem violadas, ou se forem agredidas, vão pedir ajuda a quem?”, interroga-se Filipa Alvim, antropóloga e ex-investigadora na Rede sobre Trabalho Sexual (RTS).  

Evolução da situação legal 

Até ao início dos anos 60, o Estado português recebia impostos sobre a atividade prostitucional. Os bordéis eram legais e a prostituição era regulamentada, até o Ministério do Interior e da Saúde e Assistência decretar, em 1962, que a prostituição representava um “perigo grave para a saúde pública”. A partir de 1963, a prostituição passou então a ser ilegal. Nessa década, começaram também a surgir rumores acerca do envolvimento e abuso de menores em casas de prostituição, frequentadas por altas figuras do Estado Novo, escândalo que ficou mais tarde conhecido como o caso “Ballet Rose”. Em 1982, o novo Código Penal procedeu à descriminalização da prostituição, bem como dos seus clientes, e à criminalização do lenocínio – a exploração e encorajamento por terceiros, os  chamados “chulos”, “que podem perfeitamente ser o marido ou o namorado”, segundo Filipa Alvim.

São criminalizadas duas formas de lenocínio: o lenocínio agravado, que diz respeito ao tráfico de seres humanos e à exploração sexual, caracterizado por Filipa Alvim como “um modelo da escravatura contemporânea”; e o lenocínio simples – a fomentação ou facilitação por terceiros do exercício de prostituição. “Teoricamente, é o proxenetismo”, afirma Sérgio Vitorino, ex-trabalhador sexual e membro do Movimento dxs Trabalhadorxs do Sexo (MTS). É aqui que se gera discórdia. A antropóloga considera que o crime de lenocínio protege os trabalhadores do sexo e atende a eventuais abusos. O MTS defende, no entanto, que esta é uma “situação de hipocrisia legal” e o que este artigo do Código Penal faz é criminalizar todas as formas de exercício do trabalho sexual.  

Como exemplo destas situações de “hipocrisia legal”, Sérgio descreve o episódio relativo a uma das porta-vozes do Movimento, que foi alvo de um processo judicial por dar boleia às colegas para o local de trabalho, um bosque onde estas se prostituem, e por lhes distribuir preservativos. “Uma atividade de prevenção que qualquer associação de luta contra a sida  pode fazer, as trabalhadoras de sexo auto-organizadas não podem, porque isso é considerado proxenetismo”. Sérgio conta ainda que “o MTS é uma organização ilegal” e que quando tentaram registá-lo como associação, receberam vários avisos do Ministério Público por não ser permitido fazê-lo e que, caso o fizessem, seriam criminalizados por proxenetismo.

A criminalização do suposto proxeneta dá permissão à exploração dos direitos dos trabalhadores sexuais. “Mesmo que seja apenas para a pessoa viver e que a pessoa nem lá trabalhe”, é-lhe cobrado o triplo do preço [por um arrendamento], com o argumento de que se está a correr o risco de ser criminalizado como proxeneta pelo aluguer. “E, portanto, uma lei que supostamente pretende proteger as pessoas da exploração sexual, aquilo que faz, na realidade, é empurrar as pessoas para as situações de trabalho mais perigosas e mais expostas a situações de violência”, afirma Sérgio Vitorino. O MTS é, por isso, a favor da descriminalização do lenocínio simples, por considerar que, na maior parte dos casos, o trabalho para terceiros é a forma mais segura de exercer a atividade, embora muito poucos o façam. 

Implicações do não reconhecimento

Poucas são as pessoas que enveredam na atividade por escolha. Muitas delas, tanto estrangeiras como portuguesas, são empurradas por motivos de força maior, em busca de melhores condições de vida, quando não são enganadas e se veem traficadas. Maria João afirma que “não é tão pouco usual como isso” e que a sua associação lida com casos de situação de tráfico. “Chegam cá, tiram-lhes o passaporte, em redes de máfias, e dizem que elas estão a dever 30 ou 40 mil euros por uma viagem. Elas andam a trabalhar praticamente de borla para pagar, porque se não pagarem ameaçam as famílias nos países [de origem]”.

Maria João, coordenadora do Projeto Red Light da Associação Positivo

Como porta de entrada para a Europa, Portugal conta com muitos trabalhadores sexuais estrangeiros. A ex-investigadora do RTS retrata-os como sendo jovens, na casa dos 20, 30 anos. Mulheres, homens e transgéneros de diversas nacionalidades – brasileiras, romenas, venezuelanas, guineenses. “As mulheres portuguesas têm outro perfil”, não havendo a história da cara jovem. “Eram, sobretudo, mulheres que estavam na área da prostituição já há décadas”. Durante os seus anos de investigação na área, Filipa relata que muitas delas, já na casa dos 60, 70, 80, apenas tinham uns amigos que iam oferecer uma refeição, deixavam algum dinheiro, conversavam um pouco. “Nós somos psicólogas, ouvimos muito a conversa dos clientes que precisam de desabafar”, contavam-lhe algumas delas.

Para as prostitutas, os clientes regulares são muito importantes. “Na maior parte dos casos, as pessoas têm relações humanas com os seus clientes. Aliás, o ideal para uma trabalhadora do sexo é ter clientes antigos, certos, não ter que andar sempre à procura de novos clientes, e estabelecer relações duradouras”. O ex-trabalhador sexual contou ainda que, durante a pandemia, quem mais apoiou os trabalhadores foram os clientes, com dinheiro, cabazes e medicamentos.

Isto porque o não reconhecimento da atividade impediu o acesso a apoios mínimos, tidos por outras profissões. Ainda que a situação não tenha sido ideal para a grande parte da população assalariada que viu os seus vencimentos reduzidos pelo regime de lay-off, foi possível um apoio do Estado. “Os trabalhadores do sexo ficaram fora de tudo porque, não sendo reconhecidos como trabalhadores, não tiveram direito a lay-off, a apoio emergencial, aos apoios à renda, ao adiamento do pagamento das rendas”, explica Sérgio.

Tendo consciência da situação de vulnerabilidade perante a Segurança Social em que a sua atividade os coloca, alguns dos trabalhadores sexuais optam por se registar sob outras profissões, nomeadamente massagista ou cuidador(a): “Não só por necessidade de terem manutenção de reforma ao fim da sua atividade profissional, mas também por se encontrarem em situações migratórias em que precisam ter um registo de descontos para regularizar a sua situação em Portugal”, afirmou Sérgio. 

Mas a verdade é que estes trabalhadores registados sob outra profissão são uma minoria. A maior parte não paga impostos e vê-se completamente desprotegida. Vive numa área cinzenta, num “desenquadramento total”, que as obriga a continuar a exercer a atividade durante mais anos do que seria desejado. “Isto é um trabalho que tem um prazo de validade”, refere Sérgio. Maria João, da Positivo, afirma que quando estas pessoas querem deixar a atividade “o Estado ajuda zero”, não havendo apoios nenhuns. Muitas vezes teve de pagar do seu dinheiro para não deixar as suas utentes na rua. 

Dentro do espectro do trabalho sexual, há pessoas que utilizam o trabalho sexual como forma de sobrevivência, num contexto de pobreza extrema ou de consumo de drogas, e que ganham efetivamente muito pouco. “Usam as ferramentas que têm à sua disposição para a obtenção de dinheiro, de proteção ou de alojamento. E uma das ferramentas que têm é o corpo”, afirma Ary Teixeira da associação CRESCER, que apoia comunidades vulneráveis. Ary questiona se este tipo de trabalho sexual deve ser considerado efectivamente trabalho, dado que “retira um pouco a dimensão da escolha” e que é encarado como algo que se tem de se fazer.

Há também aqueles trabalhadores sexuais cujos dias são organizados pelas horas de trabalho, como qualquer outra profissão reconhecida. Alguns chegam, inclusivamente, a retirar rendimentos elevados da sua atividade. “Há pessoas a ganhar 3 mil euros por dia. Não somos todos uns coitadinhos”, disse Sérgio Vitorino.

Uma parte dos trabalhadores do sexo, ingressando na atividade pela insuficiência salarial de outros empregos, conciliam ainda os horários laborais do trabalho sexual com os seus outros horários. Filipa Alvim constatou que a impossibilidade de pagar a renda, a comida, a escola dos miúdos era o que motivava profissionais de escritórios, hospitais ou restaurantes a conciliar as duas profissões. “Há imensas pessoas que estão na universidade a estudar ou que têm trabalhos perfeitamente legais e reconhecidos e que fazem trabalho sexual”, afirma Sérgio Vitorino.

Qual é a solução?

Após pedir uma audiência à Comissão Parlamentar do Trabalho e da Segurança Social, aquilo que o MTS constatou foi um grande desconhecimento desta realidade marginalizada e excluída, mesmo por parte dos partidos que se mostram a favor dos direitos dos trabalhadores sexuais. A Rede sobre Trabalho Sexual (RTS) tentou também, desde início, falar diretamente com os partidos, no sentido de avançar com propostas políticas públicas que envolvam os “trabalhadores do sexo em coisas que lhes dizem respeito”. 

Por causa desta ignorância dos partidos em relação à situação concreta dos trabalhadores do sexo, o movimento prefere que, “ao nível parlamentar, não se mexa no quadro legal atual”. “Porque todas as tentativas, até o momento, de o alterar são para piorar a situação”, explica Sérgio Vitorino. Por isso, o MTS não defende a regulamentação da atividade por considerar que “todos os modelos de regulamentação conhecidos na Europa são de repressão e perseguição às trabalhadoras”. A descriminalização total do trabalho sexual, inclusivamente do lenocínio simples, é a melhor opção na visão deste Movimento. 

Já a ex-investigadora da RTS, Filipa Alvim, mostra-se a favor da regulamentação, por considerar que permitiria uma igualdade destes trabalhadores perante a lei, com acesso aos devidos direitos, bem como a diminuição dos estereótipos e preconceitos. Apesar da dificuldade de consenso relativamente à situação legal, é geral a opinião da necessidade de dar voz a quem constitui a realidade do trabalho sexual. “O que é que essas pessoas acham que lhes é mais benéfico, ou [como é que acham] que estão mais protegidas? Sim, a resposta é delas”.

O MTS reforça esta necessidade de “ser dada a possibilidade às pessoas de trabalharem nos contextos e nas formas que entenderem que são mais seguras e mais proveitosas para si”. “A proibição e a perseguição ao trabalho sexual só contribui para agravar esse estigma em vez de contribuir para começar a desagravá-lo e a tornar este tipo de trabalho algo aceite e normal”, conclui Sérgio.

O espaço europeu é composto por diversos modelos no que diz respeito à situação legal do trabalho sexual. Em alguns países do leste europeu, na Irlanda e no Reino Unido, a prostituição e todas as atividades a ela relacionadas são sancionadas. Já países como a Suécia, Noruega, Islândia e França aplicam o modelo nórdico, no qual o que é criminalizado não é a prostituição, mas a procura da mesma - o cliente. Países Baixos, Áustria, Suíça, Grécia, Hungria e Letónia são dos poucos onde a atividade é legal e regulamentada. Mesmo entre estes, as condições divergem.

Apesar de o trabalho sexual ser já anteriormente descriminalizado, é com a Lei da Prostituição de 2002, que a prostituição se torna legalmente regulamentada na Alemanha. Esta lei veio permitir melhores condições e proteção aos trabalhadores, que puderam passar a ter o direito de exigir o pagamento acordado e de recorrer ao tribunal caso este não fosse cumprido. E também a aceder a assistência médica e seguro de desemprego. Considerada demasiado liberal, em 2017, foi promulgada uma nova lei, a Lei de Proteção de Prostitutas(os) alemã, a qual tem vindo a criar uma onda de descontentamento na comunidade dos profissionais do sexo.

Com a nova obrigatoriedade de entrega de dados privados, de registo, de comparecer em consultas de saúde, de licença por parte dos donos de bordéis, de acompanhamento por parte de um assistente social, assistiu-se ao encerramento de um grande número de bordéis. "Os gerentes de bordéis têm de controlar se és registado. Se não fores, o bordel pode ser imediatamente encerrado e pode ter de pagar uma multa de até 50 mil euros", conta Magdalena, da associação Hvdra, ponto de encontro e centro de aconselhamento para trabalho sexual e prostituição de Berlim.

Apesar do registo obrigatório, a verdade é que apenas 40 mil profissionais se encontram registados na Alemanha, o que também se deve à dificuldade de definir verdadeiramente o que é considerado trabalho sexual - "se apenas o fizeres uma ou duas vezes por ano para poder comprar presentes para os teus filhos no natal" és considerado trabalhador sexual?, interroga-se Magdalena.

No entanto, a regulamentação a nível federal permite que os profissionais tenham um acesso mais facilitado a aconselhamento, de forma a tomarem decisões conscientes. "Daqueles que nos contactaram acerca de começar ou não [a praticar a profissão], dois terços decidiram não o fazer" Quanto à realidade fiscal, a obrigatoriedade de pagar impostos e descontar, possibilita o direito a baixas por motivos de doença, bem como à cobertura da Segurança Social em situações de desemprego ou de procura de outras alternativas.

A proteção legal é outro dos fatores a que a legalização permite ter acesso. Quando, durante um período em que exerceu a atividade, Madalena foi roubada pelos clientes, foi capaz de denunciar o caso à polícia, ainda que "de uma perspetiva profissional, a polícia não tenha sido exatamente simpática e não tenham acreditado em mim a primeira vez" "Em termos de alojamento, os problemas são muito maiores" refere
Magdalena, e a associação Hydra expõe as dificuldades dos trabalhadores sexuais em encontrar habitação, não só devido aos elevados preços do mercado, como devido ao racismo e a xenofobia: Se tiveres um nome não alemão, já é muito mais difícil encontrar casa".

Apesar de ser legal a nível nacional, a venda de sexo é regulada a nível local, sendo muitas vezes considerada uma prática imoral ou um problema de ordem pública. "Se a tua ocupação principal estiver relacionada com crianças, num jardim infantil, por exemplo, e as pessoas descobrirem que és um trabalhador sexual, provavelmente vais perder o teu trabalho porque és considerado perigoso para as crianças". Se em Berlim se pode dizer que é permitido em praticamente todo o lado, salvo restrições em áreas residenciais, em Munique, por exemplo, a área onde se pode trabalhar legalmente é muito pequena, com exceção de uma ou duas ruas, explica Magdalena.

One Reply to ““O Estado ajuda zero”: a realidade do trabalho sexual em Portugal”

  1. Excelente artigo de investigação. É preciso despertar os governantes para a situação de discriminação que estes trabalhadores vivenciam, vivendo à margem da sociedade, como se não existissem em termos legais.

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