“É porque é brasileira!” A frase é ouvida regularmente no dia-a-dia da produtora cultural Júlia Pedro, de 41 anos, nascida do Rio de Janeiro, há quatro anos em Portugal. É no tom de voz, nos olhares e nas entrelinhas que reside a malícia do comentário. As “pequenas pérolas”, como Júlia reconhece as microagressões que sofre por ser imigrante, já lhe custaram um medicamento que precisava para sobreviver e uma vaga de trabalho.
Júlia não se via fora do Brasil até Jair Bolsonaro ser eleito presidente, em janeiro de 2019. O momento político do país e suas convicções divergentes daquele governo foram o bastante para que vendesse o carro e rumasse a Portugal.
Conseguiu um visto de trabalho, mas o primeiro ano não foi fácil. Além de uma manifestação de interesse, trouxe consigo três caixas de insulina: tem diabetes e precisa dela para sobreviver. Quando as caixas acabaram, restava-lhe o acordo diplomático que existe entre Portugal e Brasil no acesso a medicamentos. Na certeza de que o documento correspondente seria suficiente, foi ao centro de saúde e pediu a insulina. O médico rejeitou. Questionou, confusa, a razão da recusa: “O médico falou na minha cara que não ia me dar porque eu era brasileira. Só quem tinha direito era português”. Sem saber o que fazer, dirigiu-se à rececionista, que lhe confirmou o que ela já sabia – o médico não podia ter feito o que fez. Foi então que a rececionista ofereceu a Júlia o seu número de utente para que conseguisse ter acesso à substância.
Se ser imigrante é difícil, imigrante e mulher é ainda pior
No mesmo ano, Júlia começou a procurar emprego. Com formação em jornalismo, mas a trabalhar na área do cinema, encontrou uma vaga para trabalhar numa biblioteca e submeteu a candidatura. No dia da entrevista, numa sala com mais pessoas, ouviu da recrutadora: “Não aceitamos pessoas que falem ´brasileiro´”. Ninguém se manifestou. Sentiu-se sozinha, pensou em denunciar, mas eram grandes as probabilidades de ser descredibilizada. Seguiu como freelancer.
No seu apartamento alugado em Moscavide, que divide apenas com a sua gata Elis Regina – em homenagem à cantora brasileira -, Júlia relembra o que passou assim que chegou a Lisboa para dividir casa com mais três pessoas. Numa madrugada, um dos amigos do seu colega de casa, entrou de rompante no seu quarto, e insinuou-se. Ela pediu para que o rapaz saísse e, como ele recusou, foi tirado pelo seu colega de casa, que pediu desculpa pelo amigo: “Senti-me agredida sexualmente, invadida”. Numa tentativa de falar com a filha do senhorio, ouviu apenas que não poderia proibir a entrada de pessoas na casa. Ficou apenas a sensação de impotência: “Não tenho força nenhuma aqui”. No mês seguinte, mudou-se de casa.
Entre as cicatrizes emocionais dos três episódios e de outros que acontecem com frequência, como ouvir “antigamente não gostava das mulheres brasileiras, mas agora já gosto” ou “era brasileiro, não era?”, quando lhe cobraram um serviço mais caro do que deveria ser, Júlia não vê espaço para uma discussão mais profunda sobre o tema. “É como se tivesse que fingir que não aconteceu, porque não tem punição para essas coisas”, desabafa.
As raízes são tão profundas que permeiam sua intimidade, em discussões que têm com o próprio namorado português, que já afirmou mais de uma vez: “vocês merecem o Bolsonaro”, juízo que a deixou ofendida e frustrada, e que segue a acumular no relacionamento. A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) recebeu, em 2022, 491 queixas de discriminação, principalmente contra a nacionalidade brasileira (168 queixas), e a maioria dos casos contra mulheres (83). Apesar de classificar as microagressões como sistemáticas e estruturais, Júlia afirma que elas não condicionam a forma como leva a vida. Se não pode controlar as palavras dos outros, tenta pôr um travão nas suas proporções: “percebo que estou a ser agredida, mas não sou humilhada”. Enquanto vivermos sob a sombra da generalização que dá asa à agressão, é e será importante lembrar que este não é o perfil da imigrante brasileira, é o perfil de “uma” imigrante brasileira.
Editado por Gabriela Ferreira.
Fotos: Gabriela Ferreira