Desde 2017 que a Câmara Municipal de Lisboa não atribui o Prémio Valmor. Apesar das tentativas, a Câmara não deu qualquer justificação para o desaparecimento da mais importante distinção da arquitectura da capital com mais de 120 anos de história.
Jorge Catarino, arquiteto que fez parte dos júris do Prémio Valmor, enquanto representante da Câmara Municipal de Lisboa, entre 2007 e 2019, não se conforma: “Não sei o que é que pensam fazer hoje. É pena que aquilo se tenha perdido um bocado”. Catarino lamenta o desaparecimento sem explicações do mais importante prémio da arquitetura lisboeta, que não é atribuído desde 2017.
“Preparar um prémio dá muito trabalho. Muitas vezes não tivemos tempo e, de vez em quando, juntamos vários anos num só”, explica Jorge Catarino. O último Valmor foi dado em 2017, juntamente com o de 2015 e 2016. Depois, já tinham praticamente tudo pronto para em 2019 fazer essa atribuição, mas o arquitecto Manuel Salgado saiu da Câmara, e as ideias do nov o vereador eram “pouco preocupadas com aquilo, já que ele não era arquiteto”, acusa Catarino. Exatamente no início de 2020, Jorge Catarino pediu uma licença sem vencimento “e aquilo ficou para lá e nunca mais ninguém pegou naquilo”.
Apesar de não ter direito a voto, o papel de Jorge Catarino era “quase de desempate”: “Para mim foi muito gratificante, porque eu fazia a apreciação dos projetos todos os dias e ali, de alguma forma, permitia-me premiar aqueles que entendíamos”. Mais de cinco anos depois, nada se sabe sobre os prémios dos anos que passaram. José Manuel Pedreirinho, autor do livro “A História Crítica do Prémio Valmor” também está descontente com a situação: “Neste momento, as pessoas nem sequer sabem se o Valmor já foi atribuído”. O autor e arquiteto lembra os seus avós, que costumavam visitar os edifícios premiados: “O prémio adquiriu nos primeiros anos um grande prestígio por isso”, mas que, segundo ele, se tem vindo a perder.
Um prémio com mais de 100 anos de história
O Prémio Valmor surgiu em 1902, em Lisboa, por oferta de Fausto de Queiróz Guedes, conhecido também por Visconde de Valmor que, no seu testamento, deixou “mais cincoenta contos” para que todos os anos fosse premiado o proprietário e o arquiteto do “mais bello predio ou casa edificada em Lisboa”. Deixou como condição que os edifícios tivessem um estilo “digno duma cidade civilizada”.
Desde o seu início contam-se 82 Prémios e 78 Menções Honrosas atribuídas. Várias foram as justificações que se deram para a não atribuição do Prémio Valmor e Municipal da Arquitetura – como é hoje chamado – em 53 dos seus 122 anos. Desde a “profunda crise interna” da Câmara de Lisboa, à “falta de qualidade das obras”, assumidas pelo júri.
Em 1982, o Valmor juntou-se ao Prémio Municipal da Arquitetura como uma forma de “preencher os objetivos do Prémio Valmor, com uma modernidade de critérios que o testamento do Visconde de Valmor não permitia”, tal como é descrito num livro publicado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), em 2004, sobre a história do Prémio.
Cândido Chuva Gomes, arquiteto nomeado pela Ordem para fazer parte do último júri, encara a junção como uma “apropriação normal e natural”, tendo em conta que os prémios tinham objetivos semelhantes e, por isso, “sobrepostos” – não fossem estes ter até galardoado em 1944 o mesmo edifício, uma moradia situada na Avenida Pedro Álvares Cabral, 67.
Esta junção veio permitir que uma verba maior fosse atribuída ao vencedor – o valor do prémio passou a ser de 25.000 euros. Porém, esta alteração veio também modificar a constituição do júri, tornando o prémio mais dependente do poder político da CML. O júri com direito a voto passou a ser constituído pelo próprio presidente da CML e por uma “personalidade” por si nomeada, pelo Vereador do Pelouro da Cultura, e por mais três elementos, nomeados pela Academia Nacional de Belas Artes, pela Ordem dos Arquitectos e pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa (FAUTL). O valor do prémio passou a ser de 25.000 euros.
Para Pedreirinho, o aspeto mais importante nas decisões é “discutir as obras, apreciá-las” e isso perdeu-se: “Num júri de três, seguramente se discutem as decisões e se procuram decisões de consenso. É difícil um júri de três atribuir um prémio que não seja por unanimidade. Num júri de cinco, vai a votos e ganha o que está em maioria e não há consenso nenhum”.
Junção afectou prestígio
Para Pedreirinho, a queda do prestígio do Prémio começou precisamente aquando da junção entre os prémios. “Nos anos 80, a CML resolveu alterar um bocado as regras do jogo para mal: quiseram aumentar o valor do prémio, e para isso juntaram o Prémio Valmor com o Prémio Municipal de Arquitetura, que tinha um valor dado pela CML”, explica o arquiteto. “Por causa disso, o prémio passa claramente a ser dado a pessoas que estão de algum modo ligadas à CML e perde, para mim, muito do prestígio que tinha”.
Segundo Pedreirinho, há algumas incongruências em toda a história do Prémio. Dá o exemplo do Bloco das Águas Livres, que nunca foi apresentado “devido a razões políticas, e depois porque já era tarde. Um dos autores da obra, Nuno Teotónio Pereira, era “uma pessoa politicamente pouco apreciada” e, sendo que o edifício está pouco visível, Pedreirinho reforça que facilmente passaria despercebido. Daí que o autor afirme que “houve nalguns casos censura política na atribuição dos prémios.”
Chuva Gomes tece fortes críticas à CML, que acusa de “visão retrógrada daquilo que é o Património”. Acha ainda que a câmara intervém de uma forma “castradora” no tecido urbano da cidade e que consegue mesmo ser “pior do que aquilo que era antes do 25 de Abril”. Para este arquiteto o “perfil de trabalhos” revela um “conservadorismo gritante”, consequência da “perversidade na programação da Câmara” e dos seus vários condicionamentos dos quais “muitos trabalhos foram vítimas”.
Ao longo de mais de um século de existência, houve casos em que alguns dos edifícios que venceram o Prémio Valmor foram demolidos. Foi o caso, por exemplo, da moradia da Rua Castilho 64, vencedora do Prémio em 1930 e demolida em 1982 para criar um parque de estacionamento. Jorge Catarino diz que as demolições já não são comuns hoje em dia, graças à atualização do Plano Diretor Municipal (na qual esteve envolvido). No entanto, segundo o arquiteto, “ter um prémio Valmor não é um seguro de vida.”.
“Os edifícios Valmor não estão classificados como Património Nacional, apenas como Municipal, o que só lhes dá alguma proteção, permitindo que sejam demolidos ou deixados ao abandono”, explica Pedreirinho. “[Trata-se de] um prémio que tem evoluído numa certa depreciação – começou muito bem e depois foi-se depreciando”.