Depois de uma década de trabalho, Hollande chega finalmente à reforma.
Nascido em França, em 2012, Hollande veio para Portugal com a missão de guiar quem mais precisa. Hoje, vive na Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV), com mais três amigos reformados: Akira, Bengo e Kiara. É o merecido descanso de quem dedicou toda a vida a ajudar os outros.
Hollande pisou solo nacional aos quatro meses de idade e viveu o primeiro ano de vida na Figueira da Foz, recebido de braços abertos pela sua família de acolhimento. Sempre ativo, Hollande acompanhava a família para todo o lado. A verdade é que Hollande tinha de se habituar a estar constantemente acompanhado. Ou melhor, ser a companhia constante de alguém. Aos dois anos, Hollande concluiu a sua jornada educacional na ABAADV e tornou-se finalmente apto para realizar as suas funções enquanto cão-guia.
“Somos a única entidade em Portugal que trabalha com cães-guia e que tem o conhecimento sobre cães-guias quer em termos técnicos, como comportamentais e físicos”, explica Ana Filipa Paiva, Diretora e Médica Veterinária da ABAADV. Localizada em Mortágua, Viseu, é uma associação sem fins lucrativos, com o principal objetivo de formar cães-guias.
Hollande não é o único cão-guia que se formou na ABAADV, mas teve um percurso admirável. Quando foi entregue à sua utilizadora, em setembro de 2014, mudou-se para Lisboa e cumpriu a sua função. Passados 10 anos de serviço, o peso da idade trouxe consigo o cansaço, pelo que os trajetos longos e complexos, que em tempos conseguiu executar, passaram a ser demasiado para o “cão velhote”. Em maio de 2024, Hollande foi avaliado e considerado inapto para realizar as suas funções, pelo que chegou a hora de pousar finalmente o arnês.



“Um cão-guia, quando está a trabalhar e mal vê o seu dono a preparar-se, é o primeiro a levantar-se e ir até à porta. Se um cão começar a não fazer isso, ou há algum problema de saúde, ou um problema físico e tem de ir ao veterinário, ou na verdade, o cão não tem mais vontade de trabalhar”, explica Filipa. Quando há indícios de dificuldades antes dos 10 anos, o cão passa por uma avaliação geral feita por veterinários especializados para compreender se há necessidade de reforma. A outra situação verifica-se quando os cães-guias atingem os 10 anos de idade: os educadores da associação fazem uma avaliação e tomam a decisão soberana sobre a reforma do animal.
Assim que um cão-guia chega à reforma, o seu futuro pode tomar diversas direções. Normalmente, o utilizador e a sua família estão prontos para ficar com ele, com a condição de não o deixar sozinho em casa, pois isso não seria justo para um animal que passou vinte e quatro horas por dia junto do seu utilizador, em serviço. Caso a família não tenha essa disponibilidade, há “particulares” e famílias de acolhimento que estão sempre interessados em adotar um cão reformado. Contudo, a ABAADV prefere que as famílias de acolhimento estejam disponíveis para receber os cães-bebés.
O destino dos cães reformados é um assunto que nunca deixa de ser falado na associação. “Isso causou-nos muitos problemas, porque algumas pessoas não souberam lidar com a velhice dos cães”, explica Filipa. “As pessoas acham que é muito bom ter um cão reformado em casa, porque ele já cumpriu a sua função, vão-lhe dar muito miminho, só que um cão reformado é um cão que vai ter muitos problemas.”
Assim sendo, a ABAADV prefere que os cães voltem para a associação, tendo em conta que, além de estar preparada para receber os “cães velhotes”, possui espaço suficiente para eles circularem sem restrições, de maneira a viver a sua vida de reformados. De qualquer das formas, esta associação certifica-se sempre que os cães mais velhos vivem felizes o resto dos seus dias.
No entanto, essa certeza não torna a tarefa de lidar com a reforma menos complicada para os utilizadores. Ninguém gosta do pensamento de ter de substituir o seu companheiro de quatro patas. Pode haver uma tentativa por parte do utilizador, mesmo quando as probabilidades não estão a seu favor, de ajustar a sua rotina às inconveniências trazidas pela idade avançada do seu cão. Foi o caso de Hollande: a sua utilizadora tentou arranjar estratégias para poder mantê-lo consigo, mas existem certas verdades inevitáveis… e uma delas é a reforma do companheiro.
O destino dos cães guias reformados não é apenas uma preocupação da associação, mas também dos utilizadores. Marta Paço, de 19 anos, é um exemplo de uma utilizadora que já pensa sobre o futuro do seu cão-guia, o Gingko, que está com ela há seis meses. “Esse é um cenário que é logo falado na escola, porque obviamente vai acontecer”, refere Marta.


Marta Paço acompanhada por Gingko
O Ginkgo pertence à ABAADV, tendo sido entregue a Marta em maio de 2024. Apesar de a dupla estar junta há pouco tempo, Marta já vê em Gingko um companheiro para a vida, mesmo quando ele deixar de conseguir executar as suas funções enquanto cão-guia. Tal como a associação, Marta tem as condições requeridas e vontade de adotar o seu cão, após a sua aposentadoria, retribuindo a dedicação de Gingko com um resto de vida feliz e despreocupado.
Texto editado por António Granado
Como se forma a dupla “cão-cego”?
A formação da dupla depende de inúmeros fatores. O processo começa com o preenchimento de um questionário e com uma entrevista em que o utilizador dá a conhecer um pouco sobre si, de forma a agrupar a personalidade da pessoa com a personalidade do cão. Fatores como a motivação do utilizador e da sua família, o estilo de vida e o local onde vive (certos cães são muito sensíveis às grandes cidades, aos grandes ruídos e movimentos, sentindo-se mais confortáveis em cidades mais calmas) são essenciais para que a associação descubra a compatibilidade da dupla.
Quantas duplas “cão-cego” são feitas, em média, por ano?
A ABAADV estabelece um acordo anual com a Segurança Social, que financia o trabalho da associação. Para cumprir com o número acordado, a ABAADV forma 16 duplas “cão-cego” por ano.
Qual é o tempo médio de espera para receber um cão-guia?
Os cães-guias são entregues com dois anos de idade, pelo que quando se efetua um pedido, a preparação do cão inicia-se. Assim sendo, o tempo de espera ronda os dois anos. Contudo, a entrega do cão ao utilizador é feita de acordo com os diversos critérios da formação da dupla “cão-cego”.
Qual é o custo associado a um cão-guia?
A ABAADV é responsável por todos os custos associados aos cães-guias, recebendo um orçamento de 300 mil euros da Segurança Social e outros extras de outras entidades (patrocínios, etc.). Tendo em conta que se formam 16 duplas por ano, o valor atingido por dupla ronda os 18 mil euros. O utilizador, dependendo dos seus rendimentos, tem apenas de pagar o estágio de duas semanas de adaptação ao cão.
De onde vêm os cães da ABAADV?
A reprodução é feita na associação com os seus animais, de maneira a salvaguardar a genética dos cães-guias educados na ABAADV. Mas a associação também recebe cães de um centro de reprodução francês - a CESECAH, em Clermont-Ferrand -, cujos cães já são selecionados de acordo com a sua hereditariedade, à semelhança da associação portuguesa.
Em que situações o cão-guia pode ser retirado do seu utilizador?
A ABAADV nunca deixa de ser responsável pelos seus cães-guias, mesmo depois de serem entregues ao utilizador, pelo que a associação tem o direito de acabar com qualquer dupla estabelecida. Os cães-guias são retirados do utilizador se houver situações de má utilização, maus tratos, mau comportamento ou incompatibilidade entre o cego e o cão. Nestes casos, os cães regressam à associação para serem avaliados e entregues a um novo utilizador.
Qual é a idade legal em Portugal para ter um cão-guia?
Em Portugal só se podem atribuir cães-guia a pessoas maiores de idade, ou seja, a partir dos 18 anos.