A “doença do jogo”: viver uma vida dupla

À primeira vista, ninguém diria que já perdeu sete mil euros em apenas uma hora ou que fingiu estar duas semanas em França, quando, na verdade, as passou a dormir num hotel à beira do Casino Estoril.

Jorge A. fez a sua última aposta em junho de 2021 e, passados mais de três anos, ainda não se considera curado. Apesar de levarem uma vida aparentemente normal, as pessoas viciadas em jogo têm guardadas, no seu interior, grandes histórias de vida – e Jorge não foge à regra. Esta é a história de um homem que jogou durante 25 anos. No entanto, não estão apenas em jogo as perdas financeiras, mas também a construção de uma vida dupla repleta de desculpas fugazes e promessas quebradas.

As tentativas para conseguir arranjar dinheiro assumiam a forma de estratégias altamente engenhosas e refinadas, numa medição de cada passo ao pormenor e até ao mais ínfimo detalhe. Numa altura em que a esposa estava de férias, Jorge tentou convencê-la de que tinha tido um acidente com o carro quando, na realidade, o tinha vendido sem o seu conhecimento. Esta foi apenas a camada mais superficial deste enredo coberto de complexidade e astúcia.

Numa tentativa de revestir a sua história da máxima veracidade possível, Jorge retirou da Internet a fotografia de um BMW acidentado numa oficina. Não uma fotografia qualquer, mas uma onde não fosse visível a matrícula. Não satisfeito, chegou inclusive a alugar um carro, sob o pretexto de que teria sido o seguro a fornecer um carro de substituição. Originalmente, o plano passava por utilizar o montante obtido com a venda do carro para jogar, lucrar e voltar a adquiri-lo. No entanto, o que não estava nos seus planos era o que viria de facto a acontecer – perdeu o dinheiro todo. No final de contas, quem teve de recomprar o carro foi a sua mulher.

Este episódio é um reflexo daquilo em que se tinha tornado a vida de Jorge, resultado de um percurso que começou aos 16 anos e que o veio a acompanhar desde então. Foi nessa altura que teve o primeiro contacto com o universo do jogo, ao fazer a sua primeira aposta no Totobola. Dois anos depois, entrou num casino pela primeira vez, acompanhado por amigos que à data trabalhavam consigo numa pizzaria.

Até à altura, parecia não se tratar de mais do que um passatempo inofensivo, mas a tempestade chegou no ano seguinte. O seu pai sofreu um acidente e Jorge teve de assumir o comando da empresa da família, altura a partir da qual passou a frequentar o casino para fugir às dificuldades do dia-a-dia. O jogo e o casino, onde começou por passar apenas uma ou duas horas, tornaram-se o seu escape. Um refúgio. Mas a situação escalou e, mais que um simples refúgio, tornou-se no vício que o dominaria nos 25 anos seguintes.

Apesar de ter dito à mulher que estaria a trabalhar em França durante duas semanas, Jorge estava, na verdade, a dormir num hotel ao lado do Casino Estoril. Certo dia, o relógio de pulso marcava as 15 horas da tarde e Jorge tinha acabado de entrar no Casino Estoril. Enquanto se joga não se olha para o relógio, mas o casino tem hora de fecho. Às 3 horas da manhã, um funcionário foi ter com ele e pediu que se retirasse. Este tipo de acontecimento repetiu-se muitas vezes.

Ainda na mesma semana, houve um dia em que não passou mais que duas horas dentro do casino, comportamento que era raro, pois ganhou 33 mil euros de uma só vez. Cansado, pegou no montante e regressou ao hotel para dormir uma noite descansada como já não tinha há anos. Pensou, então, que com este dinheiro iria pagar a toda a gente a quem devia, mas não foi isso que aconteceu. No dia seguinte, voltou ao casino e perdeu 15 mil euros, sobrando-lhe apenas 18 mil. Assim, Jorge decidiu que iria pagar, aos poucos, às pessoas a quem devia e focou-se no trabalho, cumprindo a sua promessa – deixar de jogar durante, precisamente, um ano.

Nessa altura, começou a trabalhar durante 17 horas por dia para pagar as dívidas acumuladas. Mas dois meses antes de completar o primeiro ano sem jogar, começou a juntar dinheiro novamente e, no aniversário da sua promessa, voltou ao casino. Aquele dia selou a pior recaída da sua vida.

As tentativas de recuperação não foram poucas, bem como as vezes em que foi apanhado. A sua mulher, que viria a ser um dos pilares da recuperação, desvendou, várias vezes, os esquemas de Jorge. Uma vez, quando verificou o saldo da conta bancária conjunta, reparou que naquele momento se encontrava a zeros. Após alguns tratamentos de diferentes psicólogos, foi somente no terceiro que a esposa decidiu acompanhá-lo. Apesar de o psicólogo ter recomendado frequentar os Jogadores Anónimos, foi a sua mulher quem insistiu arduamente para que os contactasse. Frequentar este tipo de reuniões junto de outras pessoas em situação semelhante era fundamental para a recuperação e aceitação do seu problema.

A porta do consultório fechou-se e a esposa obrigou-o a ligar para a linha de apoio – Jorge estava desejoso que não atendessem. E não atenderam. No entanto, já ao final do dia recebeu uma chamada – era dos Jogadores Anónimos.

A partir deste dia foi sempre a melhorar. A esposa encarregou-se de gerir as contas bancárias de Jorge e dava-lhe apenas 10 euros por semana para comprar coisas essenciais, como café, pão ou alguma refeição durante as pausas do trabalho. Certificava-se ainda que Jorge ia às reuniões online e exigia-lhe todos os recibos das suas compras. Este controlo foi determinante para a nova fase da sua vida, um processo duro, mas recompensador. Hoje em dia, tem total liberdade financeira e reconhece a importância da sua esposa e do controlo que lhe fora imposto.

O jogo deixa marcas severas na vida das pessoas – Jorge perdeu dinheiro, amigos e uma parte da sua saúde mental. A perda da memória foi um dos grandes impactos que sentiu. Ainda assim, conseguiu encontrar um equilíbrio e mantém-se longe de casinos físicos e/ou online, consciente de que o risco de recaída é grande e perturbador.


Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *