Quando um padre é ordenado, pensa que os votos são eternos. Mas nem sempre é assim. Em Fátima, sacerdotes que já não exercem juntam-se para partilhar histórias marcadas pela dor, união e amor de quem nunca perdeu a fé.

Na sala retangular e comprida da Casa de Retiros de Nossa Senhora do Carmo, uma hospedagem de peregrinos em Fátima, o silêncio é apenas perturbado pelo ruído da televisão plasma que, na parede bege, exibe a cerimónia fúnebre do Papa Francisco. O espaço é minimalista, mas confortável, com o chão revestido por uma carpete de padrão colorido e uma iluminação difusa proveniente da parede envidraçada e coberta por cortinados brancos.
Os pilares de cimento que acompanham o comprimento da sala dão à divisão uma aparência moderna, também ela nítida no mobiliário novo e vagamente escolar: cadeiras em tudo semelhantes às que existem numa escola, mas com assentos acolchoados em torno de mesas com pernas metálicas dispostas em forma de quadrado e um quadro branco encostado à parede. Sobre a grande televisão, uma cruz.
A lotação da sala não está completa, e entre os presentes contabilizam-se cerca de 15 pessoas idosas, homens e mulheres, que só desviam os olhos do ecrã quando nos veem entrar timidamente, e murmuram curiosos: “São os três jornalistas que vieram de Lisboa”.
É o segundo de três dias do 51º Encontro Nacional da Fraternitas, a reunião anual de uma associação cujos membros são, na sua generalidade, padres que já não exercem o sacerdócio e as suas respetivas mulheres. Na página web do Anuário Católico podemos ler que se trata de uma “associação eclesial privada, de fiéis, constituída por ministros ordenados que deixaram o exercício do Ministério, casados ou não, e suas esposas ou viúvas”, mas que, em qualquer circunstância, nunca deixam de ser padres. Da mesma forma que um batizado será sempre batizado, um padre será sempre padre, e não se afasta necessariamente do caminho religioso quando abdica das suas funções sacerdotais.
Padre para sempre? O código de Direito Canónico (legislação da igreja) prevê uma única situação em que um padre pode recusar o título de padre, quando se verifica uma anulação do estado clerical, uma ocorrência rara, em que a ordenação é declarada nula e o indivíduo deixa de ser sacerdote. Contudo, os casos mais comuns de abandono do exercício são a demissão, forçada pela igreja como forma de punir a má conduta dos ministros ordenados, e a dispensa, uma saída voluntária, que resulta de uma reflexão profunda do requerente, que se sente incapaz de cumprir os votos que fez ou já não se identifica com as funções que desempenha. Tanto a demissão como a dispensa pressupõem uma redução do visado do estado clerical ao estado laical, o que comporta uma perda das obrigações e dos direitos inerentes aos ministério, mas que não inclui a quebra do celibato (o qual deve ser pedido separadamente). Federica Dotti, especialista em Direto Canónico e professora na Universidade Católica afirma que um ministro dispensado ou demitido “não pode exercer nenhum poder de ordem. Isso significa que não celebra missa, não celebra sacramentos. A exceção é o [cânone] 976, que é a absolvição do fiel em perigo de morte. Isso vale sempre. Se estiver em perigo de morte, posso pedir para me confessar e ser absolvida por um ‘ex-padre’, ainda que estejam outros disponíveis.” Concílio Vaticano II Decorrido entre 1962 e 1965, o Concílio Vaticano II foi uma reunião de bispos organizada pelo Papa João XXIII que operou grandes reformas na Igreja Católica, no sentido de promover a sua abertura e modernização. Este evento marcou o início da chamada “primavera da Igreja”, com uma atualização das liturgias, a valorização do ecumenismo (unidade entre as crenças cristãs) e a aproximação aos leigos, que passaram a ter uma atitude mais interventiva nas práticas religiosas. As reformas adotadas durante este período incidiram indiretamente sobre os padres afastados da igreja, uma vez que propagaram uma ideia de inclusão de todos os crentes e uma maior aceitação e tolerância face aos casos de dispensa. |
Foi o enquadramento canónico da dispensa ministerial e a exclusão dos sacerdotes dispensados das iniciativas da igreja (ver caixa) que impulsionou o Cónego Filipe de Figueiredo (1928-2003) a fundar, em 1997, a Fraternitas (na altura Fraternitas Movimento). “Apelamos para o celibato opcional na Igreja Católica Romana, isto é, que possa haver clero célibe e clero casado, como há em outras Igrejas católicas (ortodoxa, por exemplo), e protestantes; entre outras reivindicações, como, por exemplo, maior participação das mulheres na Igreja”, refere o atual presidente da associação, Fernando Félix, também ele um sacerdote que abandonou o exercício do ministério. Atualmente, para além dos frequentes artigos publicados no blogue e no boletim intitulado Espiral, a Fraternitas promove encontros anuais onde se discutem estes temas: a 51ª edição tomou como mote uma citação do Papa Francisco, sobre “uma Igreja em pé, que dá eco ao grito da humanidade.”
“O médico disse ‘ou você muda de vida ou não vai durar muito mais tempo’”
Fernando Félix, 55 anos, presidente da Fraternitas, foi padre dos Missionários Combonianos – uma congregação religiosa ao serviço das pessoas mais pobres e marginalizadas da sociedade – até 2000, ano em que pediu dispensa do ministério. “Trabalhava com jovens da zona de Santa Catarina, em Lisboa, muito ligados à questão da droga, dos bares e das noitadas. Tudo isso trouxe muitos problemas, porque o instituto não via com bons olhos esse trabalho.” A sensação de desconforto que sentia agravou-se, do ponto de vista psicológico e físico: “Estava com 30 anos e o médico disse ‘ou você muda de vida ou não vai durar muito mais tempo’. Pedi a dispensa, que só chegou quando fiz 40”.

Na primeira vez que o escreveu, o pedido de dispensa foi recusado: “Não havia nada na minha vida que fosse escandaloso”. Apesar disso, abandonou definitivamente o exercício do ministério e acabou por casar em 2006. “Há gente que me pergunta ‘deixaste de ser padre para casar?’ Não, porque eu casei depois de já ter decidido deixar de ser padre.”
Nunca perdeu a vocação missionária, que atualmente pratica ao lado da esposa, Maria José, nos intervalos do seu trabalho como jornalista – escreve para as revistas da congregação, Audácia e Além-Mar – e das responsabilidades enquanto presidente da associação, à qual se juntou em 2006. “Havia coisas na igreja que eu não concordava, e continuo a não concordar, por exemplo, esta questão do celibato obrigatório dos padres”, explica. “O casamento já existiu, existem outras orientações dentro da igreja católica oriental, porque é que a nossa tem de estar ainda presa a este rito?”
Tem a mesma opinião progressista a respeito do papel das mulheres na igreja, que devem ser integradas em funções adaptadas à sua condição, diferentes das do padre, e critica a terminologia “redução ao Estado Laical”, aplicada quando os sacerdotes pedem dispensa. O termo é uma “má tradução do latim, porque o que se diz é reconduzir ao Estado Laical. Manter esta separação, do clero acima e os leigos abaixo, não tem sentido.”
“A certa altura, o meu marido chegou à conclusão que precisava de alguém”
Quando o relógio bate as 11h30, o horário estabelece que terminou a primeira reflexão do dia e começa o momento de diálogo. Fernando Félix aproxima-se da frente da sala e pergunta aos presentes se desejam continuar o visionamento do funeral, a maioria vota que sim, e a televisão permanece acesa. Contudo, o olhar atento de quem assiste à celebração fúnebre começa a dispersar-se e a procurar novas fontes de entretenimento. Formam-se grupos em conversa animada e algumas pessoas levantam-se. Entre elas, destaca-se o olhar curioso de Eduarda e Luís Cunha, um casal de Abraveses (Viseu) de 76 e 85 anos, respetivamente, membros da Fraternitas desde o seu início.
Eduarda aproxima-se com uma atitude irreverente e brilho provocador nos olhos. Traz o marido pelo braço, que há sete anos partilha com um outro companheiro, “o senhor doutor Alzheimer”. Entre risos, conta como conheceu Luís quando era padre capelão no Ultramar durante a Guerra Colonial e como nunca mais largaram a mão um do outro desde dezembro de 1970.

Natural de uma terra nas proximidades de Seia, Eduarda fez o magistério em Lisboa e, com 21 anos, começou a frequentar encontros bíblicos. Nas reuniões, foi incentivada a voltar para Angola, “visto que aquela gente precisava de ser ensinada a cuidar dos filhos, a ler, a escrever e tal, precisava de uma promoção social.” Foi colocada no Norte do país onde, uma vez que tinha carta de condução, começou a dar boleias às outras professoras. Certo dia, decidiu conduzir até ao Quitexe sem a escolta militar que era obrigatória numa área de arame farpado – sob ameaça terrorista – como aquela. ” ’Porque é que tu vieste para aqui sem pedir escolta militar?’ Só se podia ir para determinados sítios e, na semana anterior, tinha havido um ataque. A única coisa que me acompanhou durante dois anos que lá estive foi um canivete que ainda tenho aqui.”
Foi no Quitexe que conheceu o “senhor capelão militar”, no dia 1 de dezembro de 1970, mas só se tornaram mais íntimos dois anos mais tarde, quando Luís estava em Luanda e Eduarda de regresso a Portugal, em Viseu. Luís escreveu a Eduarda para lhe agradecer por um favor que tinha prestado e a correspondência foi-se tornando cada vez mais frequente e pessoal. Com ela, aumentou o interesse que tinham um no outro. “A certa altura, o meu marido chegou à conclusão que precisava de alguém”, porventura para preencher uma lacuna afetiva: “O Luís foi órfão de pai muito cedo e tinha só uma irmã e um irmão. A mãe apenas o acompanhou durante alguns anos”.
A incessante troca de cartas com um sacerdote deixou Eduarda apreensiva, já que não queria cometer nenhum ato ilegal diante da igreja. “Passados três ou quatro dias, lá vinha a resposta. E eu pensei: ‘Isto é demais. Então espera lá que eu lhe digo’.” Questionou a Diocese de Viseu, onde Luís estava vinculado, no sentido de perceber se já tinha requerido a dispensa do ministério. Responderam-lhe que sim e o casal pôde oficializar a relação.
O processo de dispensa foi rápido e a autorização de matrimónio pela Igreja chegou em apenas um ano. Já casados pelo civil, Eduarda e Luís foram aconselhados a festejar a cerimónia de forma discreta, para não atrair as atenções, e celebraram o casamento em Benguela (Angola), em dezembro de 1974.
Depois de abandonar o exercício do sacerdócio, Luís foi professor de português e história do ensino preparatório em Angola, e do secundário quando o casal voltou a Portugal, aproximadamente um ano depois de casarem. Atualmente, residem em Viseu, onde tiveram o prazer de ver os filhos crescer e, agora, os netos.
“Sei lá o que é isso da vida eterna, do paraíso, do céu e da ressurreição”
Por volta das 13h00, o almoço é servido no refeitório da casa de retiros – caldo verde, bacalhau à brás e profiteroles – e desta vez ninguém falta. Na sala iluminada por janelas que ocupam todo o seu comprimento, o ambiente é animado mas também ligeiramente agitado: o convidado do encontro está atrasado e todos aguardam impacientemente pela sua chegada. É difícil não perceber o momento em que isso acontece, já que os membros da Fraternitas se levantam e começam a cantar a uma só voz o hino da associação, numa homenagem ao ilustre Francisco Fanhais.
O cartaz do 51º Encontro Nacional da Fraternitas descreve Fanhais como presbítero dispensado e cantor de intervenção, o que não é inteiramente verdade: o músico que ganhou notoriedade pelas suas canções de resistência ao Estado Novo nunca chegou a pedir a redução ao estado laical. Afirma que “pedir a redução é uma ofensa para os leigos, contrária à doutrina da igreja e àquilo que o Concílio Vaticano II determinou, que é justamente o elogio dos leigos e do seu papel fundamental. E portanto, há que acabar com essa história de que os leigos estão cá em baixo.”
Francisco Fanhais, atualmente com 84 anos, fazia parte de um grupo de padres progressistas que, antes do 25 de abril de 1974, fizeram oposição à cumplicidade existente entre a igreja e o regime do Estado Novo. “Éramos contra a ditadura, contra a Guerra Colonial, e a Igreja era a favor”, afirma, o que gerou tensões crescentes com o Cardeal Cerejeira, patriarca da Igreja católica portuguesa durante a ditadura.
Simultaneamente, Fanhais ganhava popularidade no meio da música de intervenção, tendo sido convidado para o programa da RTP, Zip-Zip, em 1969, onde cantou uma música a denunciar a guerra no Ultramar que foi fortemente censurada pelo regime. Lançou o álbum Cantigas da Cidade Nova em 1970 e no ano seguinte, impedido de cantar e de exercer o sacerdócio, foi para França, “para mudar de ar” e participou na gravação de Cantigas do Maio de Zeca, na altura José Afonso, com a ajuda de José Mário Branco.
Um casamento e dois filhos mais tarde, pode constatar-se que o distanciamento face à igreja foi irreversível. “Há certas interrogações que continuo a pôr a mim próprio. Sei lá o que é isso da vida eterna, o que é isso do Paraíso, o que é isso do Céu, o que é isso da ressurreição. Não encontro resposta firme, sólida, parece um conjunto de perguntas que todos nós temos que fazer”, refere Fanhais. “Mas essas interrogações não me impedem de, enquanto for vivo e tiver força, lutar por aquilo que eu acho que pode ser de mérito para todas as pessoas com quem convivo, digamos, para a humanidade em geral.”

“Eles muitas vezes sentem-se em situação de desertores”
Fanhais entende que houve uma evolução na igreja e que o cenário que conduziu ao seu afastamento é muito diferente do que existe agora e que esteve em vigor durante o pontificado do Papa Francisco, marcado pela ideia de sinodalidade. “Basicamente, significa caminhar em conjunto”, explica Raquel Amparo, leiga e jurista na Cúria Jesuíta e organizadora de grupos de trabalho que funcionam numa lógica sinodal, baseada na escuta ativa e na participação de todo o Povo de Deus, inclusive de pessoas que escolheram afastar-se da Igreja Católica. “Em 2019, o Papa Francisco convida a que haja uma escuta e um discernimento muito mais abrangente e convida as comunidades todas a formarem pequenos grupos aos quais coloca uma série de perguntas.”
Na paróquia de Torres Vedras onde está inserida, Raquel dinamizou cinco dos 20 grupos criados. Um deles integra padres dispensados ou que já não exercem o sacerdócio. “Falei com um amigo que é padre e não pediu ainda a dispensa, mas afastou-se objetivamente, ele está afastado da vida sacerdotal há cerca de 22 anos. Entretanto, ele disse-me: ‘Olha, tenho dois amigos meus que foram colegas de seminário, se calhar era interessante juntá-los também a este grupo’.”
Começaram a reunir-se em 2019, sempre à distância, dado o afastamento geográfico dos participantes – originários de Lisboa, Viana do Castelo, Fazendas de Almeirim – , mas logo se encontraram em presença passado um ano. “O nosso grupo chama-se Sinodalizando, e quando conjugamos o verbo, significa que conseguimos ultrapassar este desafio, que no fundo é um desafio do Concílio Vaticano II, de caminhar em conjunto e de incluir todos.”
O movimento de aproximação e comunhão que marca as reuniões semanais não pretende uniformizar os intervenientes, antes enfatizar as suas diferenças e a forma como podem ser construtivas para uma igreja em constante evolução. Raquel censura a atitude que existe, sobretudo da parte dos leigos, mas também das instituições, em relação a padres que abandonaram funções: “O sacramento da Ordem é um sacramento que imprime caráter e este divórcio que ainda existe, por exemplo, entre a experiência e a vida dos sacerdotes afastados do exercício e, por exemplo, a formação dos seminários, a formação de jovens que estão a dar os primeiros passos e a receber a preparação para poderem ser ordenados, faz pouco sentido”, afirma Raquel. “Se calhar, era importante que estas experiências de vida pudessem ter um contributo mais ativo na vida, quer na parte da formação, quer depois na parte, por exemplo, caritativa da igreja.”
Pedir dispensa do ministério “não é um capricho pessoal. Pressupõe um discernimento, há uma decisão forte por trás”, que não é incompatível com uma vida ativa e integrada no seio da igreja, quando se sente esse apelo. “É que eles [os padres que se afastaram], muitas das vezes, sentem-se como aqueles militares que, como é que se chama, não é que fogem, é que desertam, em situação de desertores.” Raquel destaca ainda o papel da comunicação social na difusão de um certo preconceito, quando enfatiza questões mais polémicas como o celibato, o que acaba por “desvirtuar a essência da verdadeira questão”. “Alguns dos sacerdotes que, neste momento, estão dispensados do ministério, o que me disseram foi: ‘eu já uma vez dei uma entrevista e não volto a cair noutra’.”
Raquel reconhece que a igreja tem dado vários passos no sentido de se tornar mais acolhedora para integrantes da fé tendencialmente marginalizados. “Houve mudanças de fundo, que foram um abrir de janela, uma lufada de ar fresco. Mas depois, como todas as grandes aberturas de janela, há sempre quem fique muito incomodado por excesso de ar, não é?” A morte do Papa Francisco e o conclave que se seguiu evidenciaram uma série de resistências e forças mais conservadoras no interior da igreja e, ainda que as expetativas pareçam otimistas, não se consegue prever o rumo que o novo papado de Leão XIV vai tomar.

Com o dia em Fátima a chegar ao fim e o pôr-do-sol a espreitar pelos buracos entre os cortinados, os membros da Fraternitas reúnem-se em torno de uma grande caixa branca: é o bolo de aniversário de Abílio, o membro mais novo da associação (fora o presidente), que faz 70 anos (ler perfil de Abílio). Não há como ignorar a familiaridade que se faz sentir entre os presentes. A associação foi e continua a ser fundamental para este grupo de pessoas que partilham vivências muito específicas e, em certos casos, dolorosas. A Fraternitas enfrenta um problema de perda de sócios, que não consegue recuperar por via da integração de membros mais jovens, mas continua, enquanto subsistir, a cumprir o seu objetivo de sempre. Como refere Fernando Félix, “algumas pessoas não nos compreendem. Nós estamos fora da regra, não é? Mas a nós, isto dá-nos encanto. Afinal temos que abanar as consciências.”
Texto editado por António Granado